sábado, 31 de maio de 2008

Saudade de dor gemida

Viver é saudade nascida
no pólen de flores selvagens,
flores selvagens de amor e alma.
Lá te encontrei perdida
bordada a sangue de imagens,
sangue de imagens, sangue de vivalma.

Eras saudade luminescente
acácia poeira de pó rosa,
pó rosa de divinal sexo.
Lá te encontrei inconsciente
florescendo no pólen da tua prosa,
da tua prosa sem nexo.

Prantavas o infinito agreste
nas desérticas anharas de pó carnal,
do pó carnal da morta vida.
Lá te encontrei sugando preste
o sexo da saudade animal,
saudade animal de dor gemida.

Este país (Portugal)

Não deites fora a pedra
que tens no calcanhar
do teu coração,
ela dar-te-á força
para mijares no ventre
desta nação
.

Menino pobre


Serão sempre os caminhos
que a vida nos dá,
sem ódios nem rancores;
São diferentes os ninhos
a enxada e a pá,
mas iguais os amores.

Eu sapatos lindos calço
alheio ao caminho feio
e ao sofrimento diário;
Tu triste e descalço
à custa do conforto alheio
que é o teu calvário.

Lá vens alegre sorrindo
com teu poema de criança
esculpido no teu olhar,
Tu vens, eu vou indo
sem destino nem esperança
e à espera do que chegar.

- Bom dia senhor.
Dizes-me olhando o horizonte,
alegre no teu querer;
Não. Não sou o teu senhor
nem sequer a fonte
do teu viver.

Tu andas descalço e imundo,
sorrindo mas sofrendo
os crimes do presente;
És a vítima deste mundo
onde se vive mas se vai morrendo,
que é ser mas não é gente.

Tu dormes no chão
e não sabes das tuas irmãs
que te dizem servir na cidade;
queres comer mas não tens pão,
queres, talvez, viver sem amanhãs
nesta vida que não deixa saudade.

Mas descansa
que a vida ainda terá calor
e tu virás a ser feliz,
na vida também se alcança
a justiça que será amor,
e a paz que será juiz.

E não penses nunca em mim
que mereço apenas morrer
carcomido pela mesquinha dor;
Olha com amor o teu jardim,
vê aquela flor que vai nascer
e não me chames senhor.

Tito - o construtor de Toyotas

lá vão trinta e tal anos. As chamadas Águas Quentes do Alto Hama, em Angola, uma espécie rudimentar mas pura de termas, eram um dos locais habituais onde, por o horizonte saber a infinito, eu passava os fins de semana e, nos derradeiros tempos, as semanas do fim. Das pessoas que frequentavam o local pouco recordo, para além de alguns amigos sonhadores que, no meio de umas churrascadas e de umas tantas grades de cucas, davam largas à imaginação.

No entanto, um morador nas redondezas é para mim sinónimo daque local. Não existem Águas Quentes sem ele e, certamente para mim, sem ele aquele local nunca seria o mesmo. Era o Tito.

Um puto albino que estava sempre lá, calmo e sereno como antevendo que não valia a pena chatices. Sorria, falava pouco mas tinha um olhar tão vago e penetrante como o pôr do sol. Junto ao asfalto da estrada para Luanda, o Tito montava o seu negócio.

Com carolos de milho, cápsulas de cerveja e uns pedaços de arame, construía os automóveis que vendia a todos quantos amassem verdadeiras obras primas do artesanato. Apesar de serem diversos os modelos, uns mais desportivos outros mais de serviço, o Tito só fabricava uma marca: Toyota.

Nenhuma outra conseguiu cativar o Tito, aquele puto albino de olhar tão vago e penetrante como o pôr do sol. Comprei-lhe vários modelos e, não fora o canibalismo daqueles que nunca tiveram a honra de conhecer o Tito, ainda hoje os poderia ter.

Penso que esses Toyotas do Tito estarão algures no fundo mar junto a Moçamedes, local onde foram guardados para a eternidade os caixotes daqueles cujo único erro que cometeram foi amarem Angola.

No entanto, como hoje aqui comprovo, o Tito, aquele puto albino de olhar tão vago e penetrante como o pôr do sol, deixou no meu coração um dos seus últimos Toyotas.

Obrigado Tito.

Os (meus) meninos do Huambo


Com fios feitos de lágrimas de dor
Os meus meninos do Huambo choram
Ainda marcados pelo muito horror
da miséria e da fome onde moram

Com os lábios de muito dizer aiué
Soletram pensamentos de esperança
Como quem se alimenta de tanta fé
Inebriada pelos sorrisos de criança

Os meus meninos à volta da fogueira
Já aprenderam que dizer a verdade
Será talvez mais uma bonita bandeira
mas que o melhor é não falar de saudade

Com os sorrisos mais lindos do planalto
- Essa é uma certeza para a eternidade
Fazem contas engraçadas de sobressalto
E subtraem a fome a sonhos de igualdade

Dividem a chuva miudinha pelo milho
Como se isso fosse o seu eterno destino
Saltam ao céu toda a dor feita andarilho
No seu estilhaçado mundo peregrino

Os meus meninos à volta da fogueira
Não vão aprender novas palavras
Porque a dor da miséria é cegueira
Que alimenta todos os dias as lavras

Assim descontentes à voltinha da poesia
Juntam palavras do tempo que passa
Para ver se alimentam a barriga vazia
E se descobrem o fim de tanta desgraça.

A razão de ser ontem, hoje e amanhã

O Governo da província do Huambo perspectiva, para este ano, a edificação, de raiz, de uma infra-estrutura para albergar a Casa da Cultura, tendo em atenção o desenvolvimento e valorização dos agentes culturais desta parcela do país.

A ideia foi anunciada à Angop pelo director provincial da Cultura, Pedro Tcissanga, que diz tratar-se de uma infra-estrutura que vai acolher, entre outras, uma sala de espectáculos, biblioteca e outros espaços de lazer e diversão para a juventude e criadores locais.“

É uma mais valia para os artistas, em particular, e para a juventude, em geral, que vão ter à disposição diversos espaços para a execução das suas actividades culturais. O governo pretende, com este projecto, procurar valorizar mais o trabalho dos criadores locais, dando-lhes condições para que possam executar as suas tarefas sem muitas dificuldades”, disse Pedro Tcissanga .

A construção desta infra-estrutura, segundo adiantou a fonte, tem muito a ver com a pretensão de se resolver, em parte, a questão da falta de salas adequadas para a realização de espectáculos musicais, teatro e de outras modalidades de sala, que de um tempo a esta parte debatem-se com problemas de falta de espaços.

Avaliado em três milhões e 500 mil dólares, o projecto a ser executado por uma construtora chinesa poderá ficar concluído em Setembro do ano em curso caso as obras comecem dentro do tempo previsto, ou seja este mês.

A fonte avançou que, nesta altura, foi já realizado o estudo de viabilização, esperando apenas que se resolvam as questões burocráticas para que o projecto avança sem mais delongas e para o bem da cultura do Huambo.É uma boa notícia. A cultura está ser valorizada na minha cidade.

Noutros tempos também o foi. Mas esses já lá vão. Alguém se recorda, por exemplo, do Artoliterama – Grupo Juvenil de Artes e Letras do Huambo, nascido no liceu (foto) da cidade?

Se calhar não. Esses jovens dos idos de 1975 são hoje uns kotas rezingões espalhados pelos desertos da saudade e que sobrevivem à custa dos oásis da memória.

Memória que hoje, com versos e prosas, regressa às origens.