domingo, 29 de junho de 2008

Não são flores

Não há flor que cante
toda a dor que sinto,
não há fantoche falante
que diga que minto.

É a verdade do nosso sorriso
e as lágrimas do nosso olhar
que ao longe diviso
irem encher o mar.

As flores não são flores
e os cravos não são de sol,
nesta vida só há dores
e flores murchas sem escol.

Na sombra da minha sepultura
sinto que não minto, mas sinto
a morte que nos beija e cura
a ferida que por aqui pinto.

Não são flores de verde pinho
nem sequer cravos encarnados,
são os espinhos do meu caminho
e as cicatrizes de filhos sacrificados.

Mukanda (sempre igual) de saudade e… dor

Como é que se explica a quem nos ama e que não conhece a nossa Terra, a razão porque, depois de dezenas de anos fora dela, preciso dela todos os dias, sinto-a todos os dias, amo-a todos os dias, chamo-a para junto de mim todos os dias? Não se explica.

Por alguma razão, essa terra não se define – sente-se. Mas será possível aos meus filhos sentirem algo que não conhecem na alma? No coração conhecem… de tanto ouvirem o pai falar da melhor terra do mundo.

Este é, para mim, um exemplo que contraria o provérbio “longe da vista, longe do coração”. De olhos fechados vejo-a e, por isso, ela não está longe do coração. Ela é o meu próprio coração, por muito que isso custe a quem não compreende que sentir é a melhor forma de ser digno.

Não sei se alguma vez poderei levar os meus filhos aos recantos e esquinas da minha cidade, de modo a deixá-los respirar o horizonte que cheira a infinito. Creio que seria a melhor forma de, sem palavras, explicar tudo. Explicar porque, nas madrugadas embevecidas pelo silêncio da pequenez portuguesa, respiro o choro de uma dor crónica.

Um dia, com ou sem o pai, eles acabarão por conhecer a minha (e também deles) terra. E nessa altura, mesmo sem saberem o sítio exacto onde deixei o cordão umbilical, vão respirar o silêncio, beber o infinito e dormir embalados pela certeza de que, afinal, o pai tinha razão quando chorava de saudade.

Terão, certamente nessa altura, uma lágrima no canto do olho. Uma lágrima que ao cair na terra quente fará nascer uma flor. Uma flor sem nome (que eu gostava que se chamasse Luana), uma daqueles flores que só alguns vêem, que só alguns sentem, que só alguns amam.

domingo, 22 de junho de 2008

Quem vem lá? (II)

Quem vem lá
Conheça a nossa cultura,
Por aqui há
Mortos em sepultura.

sábado, 21 de junho de 2008

Quem vem lá?

Quem vem lá
Que venha para lutar.
Por aqui há
Muitos traidores para julgar.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Última sentença (talvez)

É talvez na próxima recta
Que encontrarás a tua verdade,
Chegará vibrante como uma seta
Dirigida ao centro da saudade

Não, nunca terá nenhum desvio
Nesse percurso de castigo,
É como a mensagem que te envio
Meu bom mas hesitante amigo.

É como o pensamento que inquieta
O ancestral povo dito lusitano,
Como disse aquele nosso poeta
No seu grito de dor humano:

“Mas estorvou o inevitável tiro
A mão divina, poderosa e recta…”
Era u grito de triste suspiro
Querendo morrer mas chegar à meta.

Mas a mão divina não é suficiente
Para o debelar da funeste doença.
Tem de ser a luta da nossa gente
A dar a última e única sentença.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Para mim foste e és a maior

Em teu horizonte de granito
Via-se algo de muito estranho,
Tinhas esse olhar de infinito
Que transcende o teu tamanho.

O coração parece desfeito
Por uma dor de léguas,
Nesse sarcástico e dorido peito
Não havia lugar a tréguas.

A esperança era diferente
Nesse nascimento sem parto,
Tinhas uma dor sem presente
Recheada de sofrimento farto.

Gerada no ventre da desgraça
Morres em cada instante,
É toda uma vida que passa
Com dores e dor constante.

Terminaste uma vida sem cais
Com restos de amor bravio,
Agora já não te querem mais
Porque já não és um “navio”.

Esqueceram as muitas gerações
Que amamentaste sem surpresa,
Olvidaram as tuas sentidas orações
E os teus desamores sem natureza.

O mundo agora já não corres
Nessa tua velhice que avança,
Por isso em cada dia morres
Mulher que não foste criança.

Esqueceram toda a tua verdade
E a tua capacidade para lutar,
E é esta, repara, a humanidade
Que te quer voltar a julgar.

Foste (eu sei) heroína na guerra,
Na paz, no amor e na história,
Mas apodreces agora nessa terra
Depois de tanto amor e glória
.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Deixa que deixem e vem

Porque estamos tão sós
Se algo muito terno nos invade?
Reconheçamos nessa voz
A clara presença da saudade.

É também, eu sei, o que dizes
Quando sonhas, e sonhas comigo.
Cria então com garra as raízes
Da árvore que será o nosso abrigo.

Aprendamos a ser reverentes
Ultrapassando toda esta dor,
Lançaremos assim as sementes
Desse invisível e único amor.

Deixa essa triste fronteira
Da dúvida e da hesitação,
Vem porque és a primeira
A ter a alma no meu coração.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Duas frases que dizem tudo…

«As mães, desidratadas, não conseguem alimentar os filhos. As crianças são verdadeiras migalhas humanas, deitadas na poeira como se fossem nascidas de um mundo de terror.»

Apontamento retirado do livro "Sou Jornalista, você é árabe?" de Ana Paula Castro, cujo lançamento será em Lisboa, Livraria FNAC, ao Chiado, dia 3 de Julho, às 18,15 horas, com apresentação do Sheikh Munir (autor do Prefácio) e de Eugénio Almeida e Orlando Castro.

Pesadelo do sangue que corre

Entre metralhas o teu corpo caiu
Cheio de sangue naquele terreno,
A morte chegou e não partiu
O horizonte ficou apenas sereno.

Ao longe era vermelho o luar
Que a guerra de dor adensava,
Falei então do verbo amar
Mas entre todos ninguém ligava.

O sangue esse continuava a correr
Banhando o nossa pouca esperança.
Não, nunca conseguirei esquecer
A tua dor minha doce criança.

Até a pobre esperança me fugia
Vagueando nos caminhos da morte,
Agarrei a saudade e a tua poesia
E fugi para este pobre mas meu forte.

E o forte é um coração com vida
Que sabe perdoar mas não esquecer,
Para que a razão seja conseguida
Há que saber lembrar para viver.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Verdade, razão, justiça

A verdade nunca se esconde
Porque só ela é sagrada,
Se te perguntarem responde
Que só a justiça te agrada.

E pela verdade sempre lutarás
Até à última gota de esperança.
Acredita, irmão, então vencerás
Porque a razão nunca cansa.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Na tua e nossa cela

Na tua cela nojenta
A liamba era o teu amor,
Só assim se aguenta
A vida com menos dor.

A prisão castrou-te o canto
E esterilizou-te a poesia,
Tudo o que era encanto
Morreu naquele dia.

No dia em que lutaste
Contra essa odiosa guerra,
Foi esse o ideal que amaste
Foi o amor à tua terra.

Não morrerás nessa prisão
Que tanto te enluta,
Na razão da nossa razão
Venceremos mais essa luta.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Vozes alares

Correm vozes alares
Nos córregos do ventre
Do vento,
Sem vozes alares
Do ventre.
Aberto aos córregos
Que do vento
Trazem vozes do ventre
Alar.

sábado, 7 de junho de 2008

Em honra dos retornados

A casa, o sonho, a realidade
Lá ficaram perdidos, lá no Norte,
No norte de cristais celestes,
Foi-se a vida, foi-se a herdade,
Veio o fogo, a tortura, a morte,
A morte de garras agrestes.

O bago vermelho e triste do café
É um cristal na noite em borrão,
Em borrão, em borrão do hilota,
Tudo são saudades do que foi fé
E da vida que não foi sequer oração,
Oração morta pela guerra que brota.

As dores com sangue foram escritas
Terminando no cais do sofrimento
Onde nem o pensamento era reflectido,
Agora nem no teu Deus acreditas,
Ele deu-te a morte a cada momento,
Momento sempre de dor vivido.

Viveram e lutaram encorajados
Numa fé sempre espalhada ao vento,
E numa história que já não resiste,
Hoje são chamados de retornados
Que deixaram a alma ao relento
Numa terra onde a honra não existe.

Nem os poetas vos querem cantar
Nesta onda de franco oportunismo
Que dejecta na vossa bandeira,
Mas a justiça há-de chegar
Então com um novo heroísmo,
O heroísmo da verdade derradeira
.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Angola de outros tempos (espero)

Filhos doentes
Sem braços
Chorando,
Mães descrentes
Sem passos
Orando

Ardiam sanzalas
Aioé, aioé
Senhor,
Corria nas valas
O sangue da fé
E a dor da dor

Filhos sem pais
Mães sem filhas,
Guerra,
Aves sem cais
Barcos sem quilhas
A terra.
A minha terra…

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Vicuza Angola sonho

A criança negra recusa
Pétalas celestes de amanhã
Numa terra hoje queimada,
É o sentimento de Vicuza
No pólen da acácia clarivã
Na morte solenemente alada.

Huambo, Huila, Benguela,
Mapa acéfalo de recortes,
Sonho de pitangas agrestes;
Amorfismo desta minha cela,
Gradeamento de tantas mortes
Sem beijos, cruz ou vestes.

Tulemba, espírito reinante,
Irmão ganguela do passado,
Passado mortífero que assola;
Jamais mulher negra amante
Sentirás o espírito bom e amado
Do avoengo Ginga ou Txissola.

Quimera de Upuango
Venceu o kissange do Andulo,
Na negridão da noite Luena;
Nosso rio Cubango
Vai vermelho, vermelho nulo
Nulo com esta gangrena.

terça-feira, 3 de junho de 2008

«Morte na Picada» - Ler e recordar Angola

No próximo Sábado, dia 7, entre as 18:30 e as 19:30, Henrique Antunes Ferreira estará na Feira do Livro de Lisboa para uma sessão de autógrafos e conversa. Porque vale a pena, visite o pavilhão das pequenas editoras (do lado direito de quem sobe, quase no topo da Feira, pouco acima do Pavilhão Carlos Lopes).

Meu velho


São velhos os teus olhos,
Carcomidos os teus sentidos,
Triste o teu sorriso;
A vida foram abrolhos
Que deixaram espinhos perdidos
No ventre do teu juízo

Quando ris não sei se choras,
Quando choras não sei se lamentas,
Quando lamentas não sei se pagas;
Sei apenas que moras
Nesse córrego de tormentas,
Crivado de ódios e chagas.

Chamaram à tua sepultura
O reproduzir e viver,
Sonhando com alguém;
Não te disseram que essa tortura
É o ventre do morrer,
O sangue de matar alguém.

Nunca te disseram, meu velho,
Que quem não vive para servir
Não serve para viver;
Por isso estás nesse quelho
Olhando o sol que vai cair
E a noite que vai sobreviver.

Serviste para viver
Mas não viveste para servir
Os irmãos da nossa terra inglória;
Por isso sentes que vais morrer
Amaldiçoado pelo tinir
Da campainha da história.

Dos fracos ela não fala,
Toda a sua textura é ávida
De dádivas de heroísmo;
Nada a cala
Quando se sente grávida
De traições e fanatismos.

Mataste irmãos de sangue,
Ludibriaste homossexuais
E tuas filhas foram prostitutas,
A tua vida é exangue
Sarcástico desejo de animais,
Podridão de uma vida de lutas.

Se pagasses quando lamentas,
Se chorasses quando ris,
E não risses nunca mais:
Então o perdão que amamentas
Ser-te-ia dado pelo supremo juiz
Deste mundo de animais.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Mensagem de uma anduva

Faz do teu coração
O poleiro para a anduva
Africana.
Ela traz uma mensagem
Que diz:
- Morrem crianças.
Já não existem poetas no mundo?

Quinta-feira na Feira do Livro do Porto

A convite da Papiro Editora estarei presente numa sessão de autógrafos na Feira do Livro do Porto, certame que decorre até ao dia 10 de Junho, no Palácio de Cristal, no Porto. O “Alto Hama” terá a sua vez no dia dedicado a “Falar África”, ou seja 5 de Junho, pelas 21 horas. Estarão igualmente presentes, Fernando Cunha Araújo: “Chocolate Não Amargo”; Isabel Pires de Carvalho: “Manteiga de Cacau”; Rodrigues Miguel: “Quissonde; Vera Ribeiro: “Pedra Dura”; Marta Santos: “Gita”; Liana Tinôco Ferreira: “Vivências”; João Carlos: “As hienas também choram” e José Alberto Silva: “Começar pelo Intervalo”.

domingo, 1 de junho de 2008

O teu (papa)gaio

Vinha longe, ainda muito distante
Quando te vi com ar muito tristonho
Contemplando absorvido o céu,
Separavam-nos o vento gritante
No regaço embalando um sonho
Que nos cobria com o seu véu.

Pensei que estavas numa oração
Pois estavas totalmente absorto
Olhando uma prece de esperança,
Pensei que pedisses talvez perdão
Ao Deus que te seria conforto
Por alguma irreverência de criança.

Fui-me aproximando lentamente
Como gatito matreiro e lento
Até espontaneamente de tocar,
A tua dor estava mesmo na semente
Dessas puras lágrimas de talento
Que do teu rosto estavam a brotar.

Mas a tua oração era diferente
Qual onda frenética e convulsa
Nascida de uma dor tão sincera,
Choravas triste e descrente
Numa nobre reacção de repulsa
Pela injustiça que te dera.

Foi então que para o horizonte olhei
Na procura de uma qualquer piedade
Que justificasse a tua dor de desmaio,
Olhei e com mágoa então reparei:
Lá em cima no fio de electricidade
Estava pendurado o teu (papa)
gaio.

Livro terra


Reviver sonhos que já lá vão
num livro talvez esquecido
e adormecido na alma em poeira,
não é, creio, fácil a oração
para um poeta dolente e perdido
num mundo sem eira nem beira.

Deixem-no lá estar sonhando
perdido nos feitos sem glória,
nas esperança fantasiosas,
reviver na ternura e orando
um amanhã talvez com vitórias
sem armas, apenas com rosas.

Fechado tinha aspecto triste,
sorrindo com ar vagabundo
requebrado com ar indiferente,
um dia perguntei-lhe: Não viste
essa coisa que se chama mundo
parar abrupto, de repente?

- Não ligues triste companheiro
a esse pormenor rudimentar,
que parece puramente casual,
se parou foi talvez por roteiro
ou, quem sabe, para descansar,
não foi com certeza por mal.

- Repara meu querido amigo
na porca vida que nos rodeia,
podre, louca e degradada;
toda a gente repara no inimigo
que em cada um de nós vagueia,
e não viram a terra parada.

- Portanto não é vital com certeza
esse facto que tanto te alertou
e até te fez pensar e repensar,
repara antes na eterna beleza
que com isso ela nos despertou:
vamos oleá-la para voltar a andar.